Do Concílio Vaticano II às nossas Diretrizes atuais
– Janeiro de 2012 –
Introdução
“Nos dias 28 e 29 do mês de junho os presbíteros da Arquidiocese de Sorocaba com um grupo de leigos(as) catequistas se reuniram para aprofundar o significado da segunda urgência das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil – DGAE: “Igreja: casa da iniciação à vida cristã”. A Carta Apostólica do Papa Bento XVI oferece com precisão o motivo por que a Igreja deve recolocar no centro de sua programação pastoral a Iniciação Cristã, como condição “sine qua” de uma presença significativa na vida da sociedade de nosso tempo. Assim se exprime o Santo Padre: “Sucede não poucas vezes que os cristãos sintam maior preocupação com as consequências sociais, culturais e políticas da fé do que com a própria fé, considerando esta como um pressuposto óbvio da sua vida diária. Ora, um tal pressuposto não só deixou de existir, mas frequentemente acaba até negado. Enquanto, no passado, era possível reconhecer um tecido cultural unitário, amplamente compartilhado no seu apelo aos conteúdos da fé e aos valores por ela inspirados, hoje parece que já não é assim em grandes setores da sociedade devido a uma profunda crise de fé que atingiu muitas pessoas (PF 2). A Cristandade, expressão com a qual se designa o tempo que, desde os inícios da Idade Média até o séc. XX, no ocidente a cultura estava impregnada pelos valores e pelas práticas religiosas cristãs, entrou em dissolução, emergindo uma cultura secularizada, marcada pelo avanço das ciências e pelo senso de autonomia do sujeito humano sempre mais cioso de sua liberdade. As reflexões que seguem devem nos motivar no empenho de buscar a conversão pastoral de nossa Igreja Particular.
O Concílio Vaticano II
O Concílio Vaticano II foi um momento de graça para a Igreja quando, respondendo à convocação do Papa João XXIII, os bispos de todo o mundo se colocaram em oração e procuraram, à luz da fé, descortinar caminhos para responder aos apelos de um mundo em acelerado processo de mudanças sociais e culturais. Na América latina os desafios que se colocavam para a Igreja provinham da situação de pobreza da maioria da população oprimida pela miséria e pela fome. O Concílio nos entregou quatro documentos fundamentais, chamados Constituições: a) a “Sacrosanctum Concilium”, sobre a Sagrada Liturgia; b) a “Dei Verbum”, sobre a Revelação Divina: c) a “Lumen Gentium”, sobre a Igreja; d) a “Gaudium et Spes”, sobre a Igreja no mundo atual. O Concílio quis ser eminentemente pastoral ocupado em oferecer aos cristãos as indispensáveis orientações para uma presença evangelizadora no mundo. Para tal retomou, em formulação nova, os elementos essenciais de nossa fé e procurou explicitar, sobretudo através dos documentos chamados decretos, os caminhos de renovação da vida eclesial. Uma avaliação do impacto de cada documento na vida da Igreja e de seus frutos há de ser feita nesses anos do jubileu do Concílio.
Medellin: a luta pela justiça
Nesta reflexão quero ressaltar que, na América Latina, a recepção do Concílio Vaticano II teve decisiva influência na tomada de posição da Igreja em relação aos graves problemas sociais que afligiam a vida de nosso povo. A Conferência de Medellin, produziu uma série de documentos, procurando aplicar na América latina as orientações do Concílio: I) Justiça, Paz, Família, Demografia, Educação, Juventude. II) Pastoral popular, Pastoral de elites, Catequese, Liturgia. III) Movimentos de Leigos, Sacerdotes, Religiosos, Formação do Clero, Pobreza da Igreja, Pastoral de Conjunto, Meios de Comunicação. O Papa Paulo VI se fez presente e, na ocasião, alertou para a tentação de recurso à violência como forma de promover a justiça social bem como à visão marxista da sociedade como ferramenta de interpretação da história. Os frutos da Conferência de Medellin se traduziram em forte acento na opção preferencial pelos pobres com a consequente busca de fazer do evangelho uma força libertadora das opressões por eles sofridas. Nesse contexto as Comunidades Eclesiais de Base se multiplicaram e ganharam força dentro da Igreja e da sociedade. A Teologia da Libertação se estruturou nesse contexto e se tornou para muitos simplesmente a Teologia. Houve teólogos que pensaram poder reinterpretar todo o conteúdo da revelação tendo como uma espécie de objeto formal a libertação social dos pobres. Tal pretensão se serviu posteriormente do enunciado do objetivo geral das Diretrizes Gerais da Ação (Pastoral) Evangelizadora no Brasil onde sempre de novo foi incluída a opção preferencial pelos pobres como a luz a iluminar a ação da Igreja: “à luz da opção preferencial pelos pobres”. Na teologia a luz iluminadora da reflexão teológica, seu objeto formal é o próprio Deus que se revela em Cristo. Rigorosamente a opção preferencial pelos pobres não pode ser a luz iluminadora do processo da evangelização, embora deva sempre estar presente uma vez que como nos lembrou João Paulo II, “se verdadeiramente partimos da contemplação de Cristo, devemos saber vê-Lo sobretudo no rosto daqueles com quem Ele mesmo Se quis identificar: ‘Porque tive fome e destes-Me de comer, tive sede e destes-Me de beber; era peregrino e recolhestes-Me; estava nu e destes-Me de vestir; adoeci e visitastes-Me; estive na prisão e fostes ter Comigo’ (Mt 25,35-36). Esta página não é um mero convite à caridade, mas uma página de cristologia que projeta um feixe de luz sobre o mistério de Cristo. Nesta página, não menos do que o faz com a vertente da ortodoxia, a Igreja mede a sua fidelidade de Esposa de Cristo” (NMI 49).
Clodovis Boff percebeu com acuidade o risco de uma teologia que colocasse o pobre como luz do pensar teológico: “não vê que está aí confundindo dois sentidos de ‘ponto de partida’: como mero começo (material, temático, cronológico ou ainda prático) e como princípio (formal, hermenêutico, epistemológico ou ainda teórico). Ora, ‘pobre’ pode ser ‘ponto de partida’ como ‘começo’ (começo de conversa), mas não como ‘princípio’ (critério determinante)”. Exageros à parte, Medellin se constituiu em um momento muito rico de abertura da Igreja, às vezes excessivamente clerical, para uma participação mais efetiva dos leigos na missão da Igreja, com especial atenção aos pobres, pensados também como sujeito principal das grandes mudanças na Igreja e na sociedade. O Concílio convocou a Igreja a se colocar a serviço do mundo. Na América Latina o grande desafio era a justiça social. A maioria absoluta de nosso povo era constituida de católicos. Era urgente investir o capital da fé cristã na transformação da sociedade. A situação social e política – estávamos em 1968 – cobrava da Igreja posições firmes contra os regimes de exceção então dominantes e uma ação pastoral que visasse o engajamento político dos fiéis. As CEBs ganharam força e encarnaram o novo jeito da Igreja ser. As pastorais sociais se multiplicaram. A liturgia e a catequese passaram a expressar o novo modelo.
Puebla: Comunhão e Participação
O documento de Puebla (ano de 1979) “Evangelização no Presente e no Futuro da América latina”, fruto da Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, significou um passo adiante, com as devidas correções, na busca de novos caminhos para a evangelização na América latina. A Exortação Apostólica de Paulo VI “Evangelii Nuntiandi” (ano de1975) e a palavra de João Paulo II na abertura iluminaram os trabalhos da Terceira Conferência. João Paulo II foi categórico em afirmar a necessidade de anunciar: a) a verdade sobre Jesus Cristo, obscurecida por releituras insuficientes e distorcidas do Evangelho; b) a verdade sobre a missão da Igreja; c) a verdade sobre o Homem. Nesse último ítem abordou a temática da libertação, prevenindo sobre posições que tendiam a reduzir a libertação cristã a uma libertação puramente temporal, como já havia advertido Paulo VI na Exortação Apostólica sobre a evangelização do mundo contemporâneo em 1975. O eixo teológico-pastoral que ilumina o documento de Puebla é o binômio “Comunhão e Participação”: “Depois da proclamação de Cristo que nos revela o Pai e nos dá seu Espírito, chegamos a descobrir as raízes últimas de nossa comunhão e participação, revela-nos Cristo que a vida divina é comunhão trinitária. Pai, Filho e Espírito vivem, em perfeita inter-comunhão de amor, o mistério supremo da unidade. Daqui procede todo amor e toda comunhão, para a grandeza e dignidade da existência humana” (DP 211-219). E ainda: “Na América Latina, Deus nos chama para uma vida em Cristo Jesus. Urge anunciá-la a todos os irmãos. Esta missão incumbe à Igreja evangelizadora: pregar a conversão, libertar o homem e impulsioná-lo rumo ao mistério de comunhão com a Trindade e comunhão com todos os irmãos, transformando-os em agentes e cooperadores do desígnio de Deus” (DP 563). Reafirma-se no documento de Puebla a opção preferencial pelos pobres à qual se acrescenta uma segunda: a opção preferencial pelos jovens. Dentro do horizonte de “Comunhão e Participação”, tendo a Trindade como fonte e modelo, é que se desenvolvem as ricas e abrangentes orientações pastorais do documento que contribuiram de modo significativo para a evangelização de nosso Continente (cf. DP 211 a 219). O contexto social e político da América latina, entretanto, estava ainda muito marcado pela luta ideológica que atingia também a vida da Igreja, razão pela qual o documento trata da questão das ideologias e procura retomar o ensinamento de Paulo VI a respeito das relações entre evangelização e libertação, ressaltando a importância das pequenas comunidades – CEBs – e procurando definir-lhes sua identidade eclesial.
A doutrina da Segurança Nacional, criticada no documento de Puebla, justificava a continuidade do regime de exceção com o consequente atentado à dignidade da pessoa, exigindo da Igreja tomadas de posição enérgicas no sentido da defesa dos direitos humanos. A teologia da libertação, em pleno vigor, embora não tivesse conseguido ditar os rumos da Conferência de Puebla, continuou a exercer forte influência tanto na formação de presbíteros como de leigos. As Diretrizes Gerais da Ação Pastoral da Igreja no Brasil, tendo retomado em sua fundamentação teológica a profissão de fé de Puebla, expressaram, na formulação do objetivo geral, a finalidade do processo evangelizador assim: “visando à construção de uma sociedade mais justa e fraterna, anunciando assim o Reino definitivo”. A preocupação com a justiça social é, pois, colocada em primeiro plano e pela sua procura se dá testemunho do Reino definitivo que já atua no presente histórico. É necessário observar que a formulação do objetivo geral nunca consegue traduzir toda a riqueza do conjunto do documento, permitindo interpretações até mesmo divergentes. O significado de “EVANGELIZAR”, por exemplo, não aparece de forma suficientemente clara em seu enunciado.
O documento de Puebla, à luz da “Evangelii Nuntiandi”, é de extraordinária riqueza. Ouso afirmar que foi o que melhor traduziu para a América latina os propósitos do Concílio. Quero, entretanto, destacar a reflexão nele desenvolvida sobre “Evangelização e Cultura” assim introduzida: “Nova e valiosa contribuição pastoral da exortação Evangelii Nuntiandi está no chamado de Paulo VI a que se enfrente a tarefa da evangelização da cultura e das culturas” (EN 20). Paulo VI havia profetizado: “A ruptura entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida o drama da nossa época, como o foi também de outras épocas. Assim, importa envidar todos os esforços no sentido de uma generosa evangelização da cultura, ou mais exatamente das culturas. Estas devem ser regeneradas mediante o impacto da Boa Nova. Mas um tal encontro não virá a dar-se se a Boa Nova não for proclamada”. Aqui se abriu um campo novo de reflexão que vai desembocar na Conferência de Santo Domingo (outubro de 1992). O tempo pós-Puebla significou, com os ensinamentos de João Paulo II, uma retomada das propostas do Concílio Vaticano II, onde a pessoa e o mistério de Cristo passam a ocupar o centro do empenho evangelizador da Igreja. A queda do muro de Berlim com o consequente colapso do comunismo ajudou a compreender que a justiça e a fraternidade não renovam as estruturas sociais sem passar pela mediação da cultura. E não haverá uma cultura verdadeiramente humanizante sem homens novos. Voltamos a Paulo VI que afirmou: “Evangelizar, para a Igreja, é levar a Boa Nova a todas as parcelas da humanidade, em qualquer meio e latitude, e pelo seu influxo transformá-las a partir de dentro e tornar nova a própria humanidade: “Eis que faço de novo todas as coisas”. No entanto não haverá humanidade nova, se não houver em primeiro lugar homens novos, pela novidade do batismo e da vida segundo o Evangelho” (EN 18).
Santo Domingo: evangelização da cultura
A Conferência de Santo Domingo concentra a atenção em Jesus Cristo e afirma com João Paulo II a urgência de uma Nova Evangelização: “Nova Evangelização, Promoção Humana e Cultura Cristã”. E o anúncio é este: “Jesus Cristo ontem, hoje e sempre (Hb 13,8)” (Ano de 1992). O Papa João Paulo II insistiu: “A confissão da fé – “Jesus Cristo é sempre o mesmo: ontem, hoje e sempre” (Hb 13,8) – que é como o pano de fundo do tema desta IV Conferência, nos leva a recordar o seguinte versículo: “Não vos deixeis seduzir pela diversidade de doutrinas estranhas” (Hb 13,9). Vós, amados Pastores, deveis zelar sobretudo pela fé da gente simples que, em caso contrário, se veria desorientada e confundida” (discurso de João Paulo II). Ainda: “Por outra parte, os novos tempos exigem que a mensagem cristã chegue ao homem de hoje, mediante novos métodos de apostolado, e que seja expressada em uma linguagem e forma acessíveis ao homem latinoamericano, necessitado de Cristo e sedento do Evangelho: como tornar acessível, penetrante, válida e profunda a resposta ao homem de hoje, sem alterar ou modificar em nada o conteúdo da mensagem evangélica? Como chegar ao coração da cultura que queremos evangelizar? Como falar de Deus em um mundo em que está presente um processo crescente de secularização?” Houve quem visse em Santo Domingo um retrocesso em relação a Puebla. Não é verdade. Houve uma concentração no mistério de Cristo e a aguda percepção de que a insistência na transformação social estava levando a um descuido com o fundamental da experiência cristã, sem o qual a cultura fica privada da força transformadora do evangelho. Santo Domingo retoma o que há de melhor em Medellin e Puebla e procura libertar a prática Pastoral da Igreja na América latina de uma interpretação equivocada do processo evangelizador que fazia da transformação social a razão principal da proclamação do evangelho. Paulo VI já havia advertido sobre tal questão: “Não devemos esconder, entretanto, que numerosos cristãos, generosos e sensíveis perante os problemas dramáticos que se apresentam quanto a este ponto da libertação, ao quererem atuar o empenho da Igreja no esforço de libertação, têm frequentemente a tentação de reduzir a sua missão às dimensões de um projeto simplesmente temporal; os seus objetivos a uma visão antropocêntrica; a salvação, de que ela é mensageira e sacramento, a um bem-estar material; a sua atividade, a iniciativas de ordem política ou social esquecendo todas as preocupações espirituais e religiosas. No entanto, se fosse assim, a Igreja perderia o seu significado próprio. A sua mensagem de libertação já não teria originalidade alguma e ficaria prestes a ser monopolizada e manipulada por sistemas ideológicos e por partidos políticos” (cf. EN 32-38). Essa observação do Santo Padre, nós a constatamos sempre que nos surpreendemos querendo resolver os problemas da sociedade, prescindindo da missão primeira da Igreja que é o anúncio do querigma e a iniciação cristã dos néo-convertidos. Retomo a afirmação de Bento XVI já citada no início dessa reflexão: “Sucede não poucas vezes que os cristãos sintam maior preocupação com as consequências sociais, culturais e políticas da fé do que com a própria fé, considerando esta como um pressuposto óbvio da sua vida diária. Ora um tal pressuposto não só deixou de existir, mas frequentemente acaba até negado. Enquanto, no passado, era possível reconhecer um tecido cultural unitário, amplamente compartilhado no seu apelo aos conteúdos da fé e aos valores por ela inspirados, hoje parece que já não é assim em grandes setores da sociedade devido a uma profunda crise de fé que atingiu muitas pessoas” (n. 2).
O Pontificado de João Paulo II
Ao deslocar o foco dos desafios à evangelização da luta social para a cultura, a Igreja retoma com vigor a urgência de anunciar Jesus Cristo. O Pontificado de João Paulo II foi fortemente marcado pela pessoa e pelo mistério de Jesus. O Encontro com Cristo e o consequente mergulho na vida trinitária, com suas consequências históricas para a Igreja e para a construção da sociedade, foi tema recorrente no ensinamento do Papa João Paulo II. Basta percorrer os documentos promulgados durante seu pontificado. Esse foi seu programa assim anunciado na sua primeira encíclica “Redemptor Hominis”: “Entretanto, se as vias a seguir, para as quais o Concílio do nosso século orientou a Igreja, vias que nos indicou na sua primeira Encíclica o saudoso Papa Paulo VI, continuarem a ser exatamente as vias que nós todos devemos seguir, então podemos nesta nova fase interrogar-nos: Como? De que maneira será conveniente prosseguir? O que será necessário fazer, para que este novo advento da Igreja, conjugado com o já iminente fim do segundo Milênio, nos aproxime d’Aquele que a Sagrada Escritura chama ‘Pai perpétuo’, Pater futuri saeculi?” Em seguida: “É precisamente aqui neste ponto, caríssimos Irmãos, Filhos e Filhas, que se impõe uma resposta fundamental e essencial, a saber: a única orientação do espírito, a única direção da inteligência, da vontade e do coração para nós é esta: na direção de Cristo, Redentor do homem; na direção de Cristo, Redentor do mundo. Para Ele queremos olhar, porque só n’Ele, Filho de Deus, está a salvação, renovando a afirmação de Pedro: ‘Para quem iremos nós, Senhor? Tu tens as palavras de vida eterna’”. O grande tema Exortação pós-sinodal “Ecclesia in America” foi: “O Encontro com Jesus Cristo vivo, caminho para a conversão, a comunhão e a solidariedade na América”. A Carta Apostólica NMI, 2001, não é outra coisa senão a reafirmação quase como mensagem final de seu pontificado, de tudo o que significou seu empenho de Pastor universal: a contemplação do rosto de Cristo para, partindo dele, em processo permanente de santificação, testemunhar no novo milênio o amor de Deus.
Aparecida e nossas Diretrizes
O desafio: fazer discípulos
A Conferência de Aparecida propõe-nos exatamente esse caminho. Fazer discípulos missionários. O discípulo começa, não a partir de uma ideia, de uma decisão ética, da assimilação de uma doutrina, o discípulo nasce e cresce no encontro e na convivência com a pessoa de Jesus (cf. DA 243 e 244). Quando da proposta da temática: “Fazer discípulos e missionários de Cristo para que nossos povos tenham vida”, o Santo Padre, Bento XVI mandou colocar um “NELE” – Cristo -, pois Ele é “o caminho, a verdade e a vida”.
Vivemos hoje um momento em que temos muitas pastorais destinadas a responder aos problemas sociais e um número insuficiente de verdadeiros discípulos para assumi-las. A “mudança de época” coloca desafios novos para a Igreja. Donde a necessidade de formar verdadeiros discípulos de Jesus. Nesse sentido as atuais Diretrizes da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil indicam para nós o caminho para tornar realidade as propostas do documento de Aparecida.
Uma Igreja Missionária
Uma Igreja em estado permanente de missão, presente e atuante no mundo, pressupõe que os batizados, a começar pelos ministros ordenados, a exemplo do apóstolo Paulo, estejam tomados pelo mistério de Cristo, vivendo-o na oração, na fração do Pão e na comunhão fraterna, de modo a poderem repetir com o documento de Aparecida: “conhecer Jesus é o melhor presente que qualquer pessoa pode receber; tê-lo encontrado foi o melhor que ocorreu em nossas vidas, e fazê-lo conhecido com nossa palavra e obras é nossa alegria” (n. 29). Por que e para que retomar com vigor a Iniciação Cristã tendo como paradigma a forma como ela se construiu nos inícios da vida da Igreja? A resposta vem da própria realidade eclesial que estamos vivendo. E vem sob a forma de perguntas: onde está a maioria de nossos católicos, batizados em nossa Igreja, muitos dos quais fizeram a primeira comunhão, foram crismados e se casaram ou desejam se casar na Igreja? Qual a porcentagem de católicos que participa da missa dominical e da vida de nossas comunidades? Dos que participam da missa aos domingos, quantos estão engajados em alguma pastoral ou movimento da Igreja? Quantos estariam dispostos a esse engajamento se para tal forem chamados? Qual a influência que exercem na vida da sociedade? Sua presença gera a cultura da vida? Por que, sobretudo entre os pobres cresce a adesão às comunidades pentecostais oriundas do protestantismo? E o mundo da política? Não é verdade que a maioria de nossos políticos foi batizada pela Igreja Católica? Quantos católicos entraram na política partidária a partir de sua experiência eclesial, ou sob a influência da fé, e permanecem fiéis, dando testemunho do evangelho no exercício de sua função pública? E que dizer da presença católica nas escolas e nas universidades? Paulo VI na “Evangelii Nuntiandi” já havia levantado perguntas semelhantes: “O que é que é feito, em nossos dias, daquela energia escondida da Boa Nova, suscetível de impressionar profundamente a consciência dos homens? Até que ponto e como é que essa força evangélica está em condições de transformar verdadeiramente o homem deste nosso século? Quais os métodos que hão de ser seguidos para proclamar o Evangelho de modo a que a sua potência possa ser eficaz?” (EN 4). As perguntas poderiam se multiplicar indefinidamente abordando todo o vasto campo da vida da sociedade e de suas instituições.
A iniciação cristã
As DGAE dizem assim: “Esta é a razão pela qual cresce o incentivo à iniciação à vida cristã, ‘grande desafio que questiona a fundo a maneira como estamos educando na fé e como estamos alimentando a experiência cristã’. Trata-se, portanto, de ‘desenvolver, em nossas comunidades, um processo de iniciação à vida cristã que conduza a um encontro pessoal, cada vez mais profundo com Jesus Cristo’, atitude que deve ser assumida em todo o continente latino-americano e, portanto, também no Brasil. Este é um dos mais urgentes sentidos do termo missão em nossos dias. É o desafio de anunciar Jesus Cristo, recomeçando a partir dele, sem “dar nada como pressuposto ou descontado”. É preciso ajudar as pessoas a conhecer Jesus Cristo, fascinar-se por Ele e optar por segui-lo” (n. 40). Conhecer Jesus Cristo sempre mais, mistério inesgotável de graça e de amor. A constatação de que muitos católicos receberam os sacramentos da iniciação cristã sem terem sido iniciados de verdade na vivência do evangelho está a pedir um catecumenato pós-batismal, ou seja, uma iniciação existencial à vida da Igreja, começando pelo querigma e passando pelo processo de catequese onde os fundamentos da fé e a experiência do encontro com Cristo na Liturgia se tornem o Pão de cada dia, conduzindo a uma autêntica vida de comunidade e de presença no mundo. O documento de Aparecida mudou o foco da ação evangelizadora: trata-se de anunciar Jesus Cristo para fazer discípulos, sem o que não teremos nem inculturação, nem mais vida, nem transformação social rumo ao reino definitivo. As novas Diretrizes da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil são o belo fruto de todo um caminho que vem sendo feito pela Igreja no pós-concílio. Longe de afastar a Igreja da história e do compromisso com os pobres, a evangelização, tal como vem formulada nas atuais diretrizes, aumentará em qualidade e número os discípulos, verdadeiros missionários no coração do mundo. Quanto mais profundamente o fiel mergulha no mistério da comunhão eclesial, tanto mais sua presença no mundo é fonte de vida para os irmãos: “A construção da cidadania, no sentido mais amplo, e a construção de eclesialidade nos leigos, é um só e único movimento” (DA 215).
Igreja, comunhão missionária
A Eclesiologia de Comunhão é, no entender de João Paulo II, a que melhor traduz os ensinamentos do Vaticano II sobre a Igreja. Na Assembleia Extraordinária do Sínodo dos Bispos em 1985, em que foi avaliada a recepção do Concílio, João Paulo II ressaltou: “de modo particular neste Sínodo foi examinada a natureza da Igreja, enquanto é mistério e comunhão, isto é, koinonia” (n. 6). Em 1988, na Christifideles laici, exortação pós-sinodal sobre os fiéis leigos – o sínodo se deu em 1987 -, João Paulo II retoma o ensinamento do Sínodo de 1985: “ A eclesiologia da comunhão é a ideia central e fundamental nos documentos do Concílio: “A Koinonia – comunhão, fundada na Sagrada Escritura, é tida em grande honra na Igreja antiga e nas Igrejas orientais até aos nossos dias. Por isso, muito se tem feito desde o Concílio Vaticano II para que a Igreja como comunhão seja entendida de maneira mais clara e traduzida de modo mais concreto na vida. Que significa a complexa palavra ‘comunhão’? Trata-se fundamentalmente de comunhão com Deus por Jesus Cristo no Espírito Santo” (n. 19).
A Eclesiologia de Comunhão implica necessariamente a dimensão missionária: “Ora, a comunhão gera comunhão e reveste essencialmente a forma de comunhão missionária. Jesus, de fato, diz aos Seus discípulos: ‘Não fostes vós que Me escolhestes; fui Eu que vos escolhi e vos constituí para irdes e dardes fruto e para que o vosso fruto permaneça’ (Jo 15,16). A comunhão e a missão estão profundamente ligadas entre si, compenetram-se e integram-se mutuamente, ao ponto de a comunhão representar a fonte e, simultaneamente, o fruto da missão: a comunhão é missionária e a missão é para a comunhão” (32). O documento de Aparecida assume decididamente essa compreensão no seu capítulo V, onde descreve “a comunhão dos discípulos missionários na Igreja”.
O círculo virtuoso das urgências
Nossas atuais Diretrizes da Ação Evangelizadora condensam de maneira objetiva aquilo que é a missão essencial da Igreja, colocando nas urgências os passos do processo evangelizador, que devem ser pensados como formando um círculo virtuoso: missão-anúncio, iniciação (inserção na comunhão eclesial), comunidades concretas (visibilização da comunhão) e missão-serviço à vida plena (testemunho acompanhado do anúncio explícito). Tocadas pelo testemunho e pelo anúncio querigmático haverá outras pessoas que passarão pelo processo de iniciação, e, inseridas na comunidade, se tornarão por sua vez discípulas e testemunhas a serviço da vida plena. O processo integral é alimentado pela Palavra, que deve animar toda a vida da Igreja. Aqui não se trata de prioridades, trata-se da Prioridade, ou seja, da tarefa essencial da Igreja.
A urgência de implantar esse processo na prática da Igreja é, sem dúvida, um apelo do Espírito. Imaginemos uma Paróquia em que um grupo de pessoas, já participantes da vida da Igreja, refaçam a experiência do encontro com Cristo pela acolhida do querigma, “fio condutor de um processo que culmina na maturidade do discípulo de Cristo” (DA 278) e que, em razão dessa experiência se disponha a formar uma pequena comunidade de vida, que se reúne periodicamente para orar, aprofundar o conhecimento da fé e partilhar as experiências de vida. Imaginemos os membros dessa comunidade assumindo a tarefa da visitação mensal em um determinado setor da paróquia, em espírito de solidariedade e com a disposição de oportunamente anunciar Jesus. Imaginemos que muitas, ou algumas pessoas, se interessem pela vida cristã e se disponham a viver a mesma experiência, formando assim uma nova pequena comunidade que faça a experiência da comunhão eclesial e cujos membros comecem em outro setor da paróquia a visitação missionária. Imaginemos esse processo caminhando lenta e firmemente, superando os inevitáveis obstáculos que se colocam no caminho dos operários do Reino, e, então poderemos sonhar com a construção de uma Igreja de discípulos missionários, comunidade de comunidades, a serviço da vida plena, para a glória de Deus e a salvação do mundo. Esse é o caminho proposto pelo documento de Aparecida e pelas nossa Diretrizes da Ação Evangelizadora.
O Sínodo para a Nova Evangelização e o Ano da Fé
O Sínodo sobre a Nova Evangelização – a transmissão da Fé – e o Ano da Fé, proclamado pelo “Motu Proprio Porta Fidei”, insistem no mesmo tema. A razão dessa retomada vem assim expressa em texto acima citado e que proponho de novo no final dessas reflexões: “Sucede não poucas vezes que os cristãos sintam maior preocupação com as consequências sociais, culturais e políticas da fé do que com a própria fé, considerando esta como um pressuposto óbvio da sua vida diária. Ora, um tal pressuposto não só deixou de existir, mas frequentemente acaba até negado. Enquanto, no passado, era possível reconhecer um tecido cultural unitário, amplamente compartilhado no seu apelo aos conteúdos da fé e aos valores por ela inspirados, hoje parece que já não é assim em grandes setores da sociedade devido a uma profunda crise de fé que atingiu muitas pessoas” (n. 2).
Conclusão
A Igreja de Sorocaba quer responder ao aos apelos de Deus, por isso ora ao Senhor:
“Senhor Jesus, conhecer-Te é o melhor presente que qualquer pessoa pode receber; encontrar-Te foi o melhor que aconteceu em nossas vidas; tornar-Te conhecido com nossa palavra e obras é nossa alegria (DA 29). Faze, Senhor, que pela ação do Espírito Santo, a Tua Verdade seja nossa Vida e que anunciar-Te e Te fazer conhecido seja, de fato, nossa alegria. Nossa Senhora da Ponte, fica conosco e contagia-nos com o amor de teu Filho, para que sejamos também comunidade missionária, sinal desse amor para nossos irmãos e irmãs de humanidade, aqui nesse chão de Sorocaba, que nasceu e cresceu sob tua proteção! Amém”.
Dom Eduardo Benes de Sales Rodrigues
Arcebispo de Sorocaba