O Conteúdo Querigmático: Papa Francisco como Kairós na Igreja
“A Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi… frisava bem que a evangelização, cuja finalidade é levar a Boa Nova a toda a humanidade, a fim de que esta a viva – é uma realidade rica, complexa e dinâmica, constituída por elementos ou, se preferir, de momentos, essenciais e diferentes entre si, que é preciso saber abranger com uma visão de conjunto, na unidade de um único movimento” (CT 18).
A melhor forma de visualizarmos esse processo dinâmico e seus elementos ou etapas é partindo da definição do Concílio Vaticano II sobre a palavra Evangelização, como Ministério Profético ou da Palavra na Igreja, divido em três etapas:
– 1ª etapa: querigma – Primeiro Anúncio ou pregação missionária.
– 2ª etapa: catequese – Formação bíblica básica.
– 3ª etapa: teologia – Formação bíblica científica.
– No marco litúrgico: Homilia.
O Conteúdo do Querigma
Para se compreender o conteúdo da mensagem Querigmática, embora ainda haja muita mescla, é fundamental partimos da distinção deste conteúdo em relação ao conteúdo catequético já estabelecido e organizado na tarefa da Igreja.
“Antes de mais nada, convém recordar que entre a Catequese e a Evangelização (querigma) não existe separação nem oposição, como também não há identificação pura e simples, mas existem sim relações íntimas de integração e de complementaridade recíproca” (CT18). “A finalidade da Catequese corresponde ao período em que o cristão, depois de ter aceitado pela fé a Pessoa de Jesus Cristo como único Senhor e após ter lhe dado uma adesão global, por uma sincera conversão do coração [fruto da mensagem querigmática], se esforça por melhor conhecer o mesmo Jesus Cristo, ao qual se entregou [fruto do conteúdo catequético]” (CT 20).
Mediante a clarificação de conceitos é importante reafirmar que querigma é muito diferente de catequese. E o que torna explícito essa diferença é o próprio significado:
– Querigma: palavra grega que significa anúncio, proclamação – “o querigma é o anúncio do Nome, do ensinamento, da vida, das promessas, do Reino e do mistério pascal de Jesus de Nazaré, Filho de Deus (cf. EN 22)” (Subsídios Doutrinais 4 – 18). É anunciar Jesus Cristo vivo e todos os seus atos de salvação como um acontecimento atual.
– Catequese: (até o segundo século chamada Didaquê) é ensino, instrução doutrinal básica, elementar, porém completa, que corresponde a uma iniciação cristã integral sem chegar a desenvolvimentos teológicos e nem a exegese bíblica científica (cf. CT 21).
Para ilustrar essa distinção de conceitos, poderíamos ter como referência a passagem de Mc 5,21-24.35-43 onde Jesus ressuscita a filha de Jairo. Jesus, encontrando uma menina morta, a primeira coisa que faz é dar a ela uma ordem de ressurreição: “Talitá cum”, que quer dizer: “menina, levanta” – isso é querigma, ordem de ressurreição: “volta a vida”. Somente depois de ressuscitar é que Ele diz aos pais da criança: “agora podem trazer o que comer” – isso é catequese, dar o alimento. É certo que Jesus não chegou mandando dar comida para quem não tem vida, mas primeiro ressuscitou, depois mandou alimentar. Portanto, primeiro querigma [devolver a vida] e depois catequese [dar o alimento].
Os Evangelhos sinóticos resumem a ação de Jesus, em três dimensões, com versículos similares, intercalados em diversos capítulos, que mostram Jesus percorrendo a Galileia proclamando (querigma), ensinando (catequese) e curando. O Novo Testamento apresenta explicitamente esse modelo em Atos dos Apóstolos 2,42 quando diz: “Perseveravam eles na doutrina dos apóstolos…” (catequese). Mas quem perseverava? Aqueles que tiveram um encontro verdadeiro com Jesus Cristo (querigma). Atos 2,38 vem antes de Atos 2,42. Nossa oferta deveria seguir o mesmo itinerário, se é que queremos voltar a experimentar o “ardor de uma Igreja viva como na primavera da Igreja nascente” como pediu Papa São João XXIII ao convocar toda a Igreja a rezar pelo Concílio Vaticano II.
A mescla desses conteúdos ou a postura de dar por suposto ou implícito a mensagem querigmática é uma realidade na Igreja hoje, a ponto do Papa Francisco afirmar em Evangelii Gaudium: “Não se deve pensar que, na catequese, o querigma é deixado de lado em favor de uma formação supostamente mais ‘sólida’. Nada há de mais sólido, mais profundo, mais seguro, mais consistente, mais sábio que esse anúncio. Toda formação cristã é, primariamente, o aprofundamento do querigma… É o anúncio que dá resposta ao anseio de infinito que existe em todo coração humano” (165).
No Novo Testamento, o conteúdo do Querigma foi passando por diversas fases até chegar ao que hoje entendemos como Querigma:
1º) Pregação de João Batista e do próprio Jesus: o Reino de Deus. “Convertei-vos porque o Reino de Deus está próximo…” “Cumpriu-se o tempo…” – a chegada do Reino de Deus.
2º) Depois da Paixão, morte, Ressurreição de Jesus, Sua ascensão aos céus, os apóstolos começaram a anunciar o querigma apostólico: contavam aos outros a experiência que fizeram. Encontraram Jesus, o Salvador, o Messias, o Enviado do Pai, o Senhor – a Salvação em Jesus Cristo.
3º) No final do século I, foi feito em Mateus 28,19 um acréscimo litúrgico completando, então, o que entendemos hoje como o conteúdo querigmático. Em Mateus 28,19 diz: “Ide por todo o mundo e fazei de todos os povos meus discípulos. Batizai-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo…” – confissão da Trindade. Antes se batizava em nome de Jesus.
“O centro do primeiro anúncio (querigma) é a pessoa de Jesus, proclamando o Reino como uma nova e definitiva intervenção de Deus que salva com um poder superior àquele que utilizou na criação do mundo. Essa salvação é o grande Dom de Deus, libertação de tudo aquilo que oprime a pessoa humana, sobretudo do pecado e do Maligno, na alegria de conhecer a Deus e ser conhecido por Ele, de o ver e se entregar a Ele” (EN 9; DGC 101).
O conteúdo do Querigma é a experiência de um Pai amoroso e providente: Deus ama você como um Pai amoroso de forma pessoal e incondicional; de Jesus como Salvador e Senhor e do Espírito Santo como Vivificador, doador da Vida nova e como poder de Deus para que se cumpra a missão de continuar a extensão do Reino dEle nesse mundo. No querigma não se dá nenhum desenvolvimento doutrinal, o que já seria catequese, mas se conta aos outros uma experiência vivida.
“Evangelizar é, em primeiro lugar, dar um testemunho simples e direto do Pai, revelado por Jesus no poder do Espírito Santo” (EN 26).
“A base, o centro e o ápice do anúncio evangelizador é uma proclamação clara de que em Jesus encontramos a salvação” (EN 27).
O Documento de Aparecida também estimula muito a proclamação do querigma como o anúncio central da fé em Jesus Cristo, do Reino que começa com sua chegada, da salvação que oferece a todo aquele que crê, do destino de vida eterna e da vivência da fé como irmãos na Igreja, antecipação e realização do Reino já nesse mundo.
“A formação obedece a um processo integral, ou seja, compreende várias dimensões… Na base dessas dimensões está a força do anúncio querigmático. O poder do Espírito e da Palavra contagia as pessoas e as leva a escutar Jesus Cristo, crer nEle como seu Salvador, a reconhecê-lo como quem dá pleno significado a suas vidas e a seguir seus passos” (DA 279).
“Em nossa Igreja devemos oferecer a todos os nossos fiéis um ‘encontro pessoal com Jesus Cristo’, uma experiência religiosa profunda e intensa, um anúncio querigmático e o testemunho pessoal dos evangelizadores, que leve a uma conversão pessoal e a uma mudança de vida integral” (DA 226a).
“O Querigma não é somente uma etapa, mas o fio condutor de um processo que culmina na maturidade do discípulo de Jesus Cristo. Sem o querigma, os demais aspectos desse processo estão condenados à esterilidade, sem corações verdadeiramente convertidos ao Senhor. Só a partir do querigma acontece a possibilidade de uma iniciação cristã verdadeira. Por isso, a Igreja precisa tê-lo presente em todas as suas ações” (DA 278a).
As metas do Querigma
“A forma própria do anúncio querigmático é a proclamação” (Subsídios Doutrinais 4 – 31). Por isso, o querigma puro, explícito e completo deve ser oferecido sempre no âmbito de um Retiro, e o importante, quando se vive um Retiro Querigmático é que se cumpra o objetivo experiencial, vivendo as metas próprias do Querigma. Deve ser uma experiência profunda do ser inteiro, poderia-se dizer uma metanóia (mudança de mente e de coração realizada por Deus em referência a Ele), mudança de vida, experiência de salvação, de um novo nascimento para uma Vida nova, de tal maneira a transformar-se, de forma literal, em criatura nova como Jesus disse a Nicodemos (cf. João 3).
Seria importante lembrar que, diferente de metas humanas onde, pelo esforço pessoal, elas são alcançadas, a meta espiritual é onde a vida humana chega quando se deixa alcançar por Deus. É a obra que nenhum olho humano viu, nenhum ouvido ouviu, nenhum coração pressentiu, mas que Ele tem reservado para quem O ama.
As metas parciais são quatro, extraídas de Atos 2,38, quatro experiências que, somadas, geram o homem novo, capaz de dar a qualquer um que lhe pedir, a razão da sua fé, a razão da sua esperança (cf. 1Pd 3,15).
- Conversão – É a primeira e a mais importante experiência que desperta, no coração humano, o desejo de aderir e pertencer definitivamente ao Senhor. “A conversão é a resposta inicial de quem escutou o Senhor com admiração, crê nEle pela ação do Espírito, decide ser Seu amigo e ir após Ele, mudando sua forma de pensar e de viver, aceitando a cruz de Cristo, consciente de que morrer para o pecado é alcançar a vida” (DA 278b).
- Adesão a Jesus como Salvador – que chegue a um encontro vivo com Cristo. É aceitar, com a vida, a oferta salvífica que jorrou da Cruz. “A admiração pela pessoa de Jesus, Seu chamado e Seu olhar de amor despertam a resposta consciente e livre desde o mais íntimo do coração do discípulo, uma adesão a toda a Sua Pessoa, ao saber que Cristo o chama pelo nome. É um ‘sim’ que compromete radicalmente a liberdade do discípulo a se entregar a Jesus, Caminho, Verdade e Vida. É uma resposta de amor a quem o amou primeiro ‘até o extremo’” (DA 136).
- Confissão de Jesus como Senhor – que implica reconhecer, aceitar, convidar, confessar com os lábios, consagração e rendição completa da vida ao Seu Senhorio. “Não pode haver verdadeira evangelização sem o anúncio explícito de Jesus como Senhor e sem existir uma primazia do anúncio de Jesus Cristo em qualquer trabalho de evangelização” (EG 110).
- Efusão do Espírito Santo – como consequência natural para aqueles que aceitaram Jesus como Messias, Salvador e Senhor e como Poder de Deus para se tornarem testemunhas e assumirem a missão da Igreja. Pentecostes é para missão: “Eu vos envio aquele que o Pai prometeu. [Já enviados] Ficai na cidade até que do céu sejam revestidos de força” (Lc 24,49). “O querigma atua por meio do testemunho dos apóstolos e se torna eficaz pela força do Espírito Santo… ‘Irmãos que devemos fazer?’. Pedro responde e indica o caminho da conversão e do Batismo em nome de Jesus Cristo, para o perdão dos pecados, dizendo-lhes: ‘e receberão o dom do Espírito Santo’ (At 2,38)” (Subsídios Doutrinais 4 – 38). “Pela ação do Espírito, o Ressuscitado toca o coração das pessoas para que acolham a Boa Nova” (Subsídios Doutrinais 4 – 37).
Essas metas significam uma renovação e um reavivamento dos sacramentos da Iniciação Cristã: Batismo e Confirmação, para desembocar finalmente na Eucaristia. É o início de um itinerário catecumenal para cristãos já batizados recomeçarem a partir de Cristo (cf. DA 12).
“Ou educamos na fé, colocando as pessoas realmente em contato com Jesus Cristo e convidando-as para seguí-lo, ou não cumpriremos nossa missão evangelizadora.” (DA 287). “A Iniciação Cristã, que inclui o querigma, é a maneira prática de colocar alguém em contato com Jesus Cristo e iniciá-lo no discipulado” (DA 288).
O conteúdo do querigma é formado de anúncio, convite e resposta, onde “a resposta ao anúncio querigmático é existencial, pois envolve toda a pessoa. Trata-se de uma verdadeira conversão por meio da qual ocorre o arrependimento dos próprios pecados e a adesão a Jesus Cristo, com a entrega da própria vida a Ele” (Sub. Dout. CNBB (nº 4) 12). Esse conteúdo está dividido em blocos que correspondem aos sacramentos da iniciação cristã, para reavivá-los ou recebê-los de forma viva.
A estrutura da oferta querigmática é a seguinte:
I Bloco: Reavivamento do Sacramento do BATISMO |
II Bloco: Reavivamento do Sacramento da CONFIRMAÇÃO |
ANÚNCIO |
ANÚNCIO |
– Amor de Deus
– Salvação: a) pecado e suas consequências b) Jesus, solução de Deus |
– Senhorio de Jesus
– Dom do Espírito Santo: – Promessa do Pai – Cumprimento da Promessa – Novo Pentecostes |
CONVITE |
CONVITE |
– Converta-se
a) pecado b) ressentimentos c) obras de Satanás – Adesão a Jesus como Salvador – Nascer de novo pelo Espírito |
– Faz de Jesus o seu Senhor
– Faz sua a promessa do Espírito |
RESPOSTA |
RESPOSTA |
– Liturgia Penitencial | – Liturgia de Consagração |
Os temas de anúncio, o convite e a resposta são estes. Não podem ser mais, nem menos, nem outros. Desde o século I até agora, é este o conteúdo na Igreja Católica ou em qualquer outra Igreja cristã.
“O Querigma é anúncio e proclamação para suscitar a fé nos ouvintes e manter acesa sua chama, de modo que acolhendo Jesus como Filho de Deus, Salvador e Senhor, participem de sua própria vida, da vitória sobre a morte, e alcancem, assim, a vida eterna” (Subsídios Doutrinais 4 – 19).
Os conteúdos dos temas são muito simples e devem ser dados de forma simples e testemunhal, anunciado diretamente ao coração, onde os que ouvem não devem escrever nada, mas escutar com a mente e o coração abertos já que a fé vem pela pregação, ou seja, entra pelo ouvido (cf. Rm 10,17).
“O anúncio deve ser feito na força do Espírito Santo e baseado no testemunho pessoal. Não se trata, pois, de um anúncio decorado e recitado mecanicamente, mas de um anúncio encarnado na própria vida” (Subsídios Doutrinais 4 – 10).
“A preocupação com a linguagem e a metodologia nunca deverá ser mais importante do que o anúncio direto, amoroso e convincente da pessoa de Jesus Cristo, morto e ressuscitado e de Seu Reino. Esse anúncio tem força própria e pode ser feito até por pessoa de pouca instrução teórica e escolar” (Cardeal Dom Cláudio Hummes).
“… Para muitas pessoas do nosso tempo essa mensagem pode parecer loucura ou escândalo, porque está baseada não na arte retórica dos homens, nem na sabedoria desse mundo, mas somente no poder do Espírito Santo. Com efeito, o anúncio e a experiência de fé se baseiam no poder de Deus e não na sabedoria humana” (Subsídios Doutrinais 4 – 20).
Papa Francisco como Kairós
“Se uma pessoa experimentou verdadeiramente o Amor de Deus que o salva, não precisa de muito tempo de preparação para sair e anunciá-Lo… Cada cristão é missionário na medida em que se encontrou com o Amor de Deus em Cristo Jesus” (EG 120).
“A primeira motivação para evangelizar é o amor que recebemos de Jesus, aquela experiência de sermos salvos por Ele [querigma] que nos impele a amá-Lo cada vez mais. Um amor que não sentisse a necessidade de falar da pessoa amada, de apresentá-la, de torná-la conhecida, que amor seria? Se não sentimos o desejo intenso de comunicar Jesus, precisamos nos deter em oração para lhe pedir que volte a cativar-nos. Precisamos implorar a cada dia, pedir a sua graça para que abra o nosso coração frio e sacuda a nossa vida tíbia e superficial” (EG 264).
“Todos os cristãos, em qualquer lugar e situação em que se encontrem estão convidados a renovar, hoje mesmo, o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de procurá-Lo dia a dia, sem cessar. Não há motivo para alguém poder pensar que esse convite não lhe diz respeito, já que ‘da alegria trazida pelo Senhor ninguém é excluído’. Quem arrisca, o Senhor não o desilude; e, quando se dá um pequeno passo em direção a Jesus descobre-se que Ele já aguardava de braços abertos a sua chegada. Esse é o momento para dizer a Jesus Cristo: ‘Senhor deixei-me enganar, de mil maneiras fugi do vosso amor, mas aqui estou novamente para renovar minha aliança convosco. Preciso de Vós. Resgatai-me de novo, Senhor aceitai-me mais uma vez nos vossos braços redentores’. Como nos faz bem voltar para Ele” (EG 3).
Com isso podemos entender a urgência e a necessidade de que todos recebam a Evangelização Querigmática. Disso depende a renovação das pessoas e por consequência de toda a Igreja.